logo IMeN

Nutrição e cicatrização

Dr. Celso Cukier

Alterações da cicatrização podem comprometer a evolução clínica do paciente. Essa deficiência pode ocorrer em qualquer uma das fases descritas no capítulo anterior, mas destaca-se anormalidade relacionada ao colágeno. Neste capítulo abordaremos as deficiências relacionadas a aspectos nutricionais e patologias específicas ligadas  à cicatrização e ao colágeno.

Define-se por ferida o defeito ou quebra de tecido vivo que resultou de dano físico, mecânico ou térmico, ou da presença de desordem médica ou fisiológica. De maneira mais simples pode-se definir ferida como solução de continuidade anatômica e celular  do tecido. Após a manifestação da ferida inicia-se o processo de cicatrização. Esse processo pode ser dividido em fases bem definidas tendo destaque as fases inflamatória, de fibroplasia, e de maturação, conforme discutidas no capítulo anterior

Na fase inflamatória ocorre aumento da permeabilidade capilar, o que permite migração de celularidade específica como neutrófilos (6 a 48h), macrófagos (72 horas e linfócitos (5 dias).  Conjuntamente à celularidade ocorre possibilidade de migração de macro e micronutrientes, fato este importante à nutrição celular local.

Nos grandes processos cicatriciais há interferência hormonal e enzimática com a presença de histamina, eicosanóides (tromboxanes) e citocinas. Aumento da atividade da enzima xantinooxidase e maior produção de peróxido de hidrogênio foram relatados na fase inflamatória da cicatrização.

Durante a fase de fibroplasia a maior proliferação vascular na região da cicatriz é acompanhada do aumento da celularidade de fibroblastos. Esse evento aumenta consideravelmente o gasto energético e permite a produção tecidual e reparação da lesão.

Fatores como instabilidade hemodinâmica, estresse metabólico e estado nutricional podem interferir desfavoravelmente com a cicatrização (Whitney e Heitkemper, 1999).

O paciente desnutrido global ou específico pode ser prejudicado. A deficiência de um único nutriente pode prejudicar todo o processo de reparação tecidual.

Os fibroblastos produzem a substância fundamental e o colágeno. A substância fundamental é composta por glicosaminoglicanos, fibronectina e ácido hialurônico. Esses mucopolissacárides estão presentes com diferentes nomes na dependência do órgão em que atuam, como condroitina na córnea e ácido hialurônico na retina. Cada  molécula é composta por três cadeias polipeptídicas distintas (cadeias alfa 1 e 2) enroladas em forma de hélice tripla. A composição bioquímica da cadeia alfa 1 e a presença ou ausência da cadeia alfa 2 determina os diferentes tipos de colágeno e suas respectivas ações teciduais (quadro 1).

As cadeias alfa são sintetizadas pelos ribossomas e destacadas dos ribossomas nas cisternas do retículo endoplasmático rugoso, onde sofrem modificações enzimáticas que incluem hidroxilação da prolina e da lisina, glicosilação da hidroxilisina e oxidação da lisina.

A vitamina C torna-se importante nesse momento pois sua ausência impede a regulação das hidroxilases e, consequentemente, a formação da hidroxiprolina, hidroxilisina e colágeno. A oxidação da lisina, que ocorre a seguir, promove a formação de ligações cruzadas entre as cadeias adjacentes, o que configura a base estrutural do colágeno.

O colágeno está presente nos tecidos sob a forma de feixes de  fibrilas longas com padrão repetido a cada 670 nm. A unidade fundamental da fibrila é o tropocolágeno. As fibrilas se dispõem em bastões alongados de 3000 X 15 nm e com peso molecular de 85000.

Na fase de maturação ocorre deposição, agrupamento de remodelação do colágeno. Esse processo pode ser entendido como regressão endotelial. Após o depósito desordenado de substâncias diversas e formação do colágeno sobre a cicatriz ocorreram de forma desordenada, na fase de maturação ocorre a reestruturação da ferida, de forma ordenada.

O tecido conectivo estará caracterizado pela presença de fibrócitos, fibras colágenas e vasos sanguíneos proliferados na fase anterior (neoangiogênese).

Tipo de lesão, presença de estresse metabólico e capacidade de proliferação vascular são alguns dos fatores que interferirão diretamente na capacidade orgânica de reparação tecidual. Há diferenças importantes, por exemplo, na regeneração tecidual do indivíduo idoso quando comparado ao individuo jovem.

O estado nutricional interfere diretamente na reparação tecidual. Desnutrição protéica está associada à menos cicatrização por redução da produção de fiboblastos, neoangiogênese e síntese de colágeno além de menor capacidade de remodelação tecidual.

Em estudo experimental com ratos submetidos a estresse e fornecimento dietético sem arginina, os animais apresentaram deficiência na deposição de colágeno e menor força tensil da cicatriz (Nirgiotis, 1991). Quando animais, nas mesmas condições apresentadas no estudo de Nirgiotis foram suplementados com arginina ocorreu maior retenção nitrogenada, melhora na deposição de colágeno e na produção de hidroxiprolina e maior força tensil da cicatriz (Barbul, 1985). Esses estudos demonstram a possível influência de aminoácidos específicos no processo de cicatrização. 

A suplementação oral de arginina livre a voluntários humanos nas doses de 24,8g e 17g por duas semanas aumentou a síntese de colágeno, avaliado pela produção de hidroxiprolina, e a mitogênese linfocitária em resposta aos estímulos com fitohemaglutinina e concavalina A, quando comparada ao grupo placebo (Barbul e col.1990, Kirk, 1993).

Macro e micronutrientes e o aporte hídrico fornecido ao paciente podem interferir no processo de cicatrização.

A presença ou deficiência de vitaminas lipossolúveis (A e E) hidrossolúveis (C e tiamina) e oligoelementos (zinco, magnésio) podem modificar a evolução do processo cicatricial (Rojas e col, 1999). Discutiremos, em separado, cada um dos principais nutrientes relacionados ao processo de cicatrização.

Vitamina A: Têm ação específica na manutenção de visão normal, permitindo a integridade das estruturas neuro-epiteliais do globo ocular e de ultra-estruturas no interior dos bastonetes. Essencial à diferenciação e proliferação celular principalmente dos tecidos epitelial e ósseo. Recentemente, observou-se estreita relação da vitamina A na integridade do sistema imunológico. Após ingestão oral (80%), sua absorção ocorre preferencialmente no intestino delgado, por processo ativo, inicialmente como retinol. No enterócito, o álcool é esterificado formando palmitato. O palmitato é incorporado pelos quilomícrons e transportados via sistema linfático até o fígado, onde é armazenado e hidrolizado em retinol livre. O retinol circula ligado à proteína de ligação do retinol e à pré albumina. É excretado em maior quantidade pela bile e em menores proporções pela urina (1%), processo que ocorre apenas após repleção das reservas orgânicas.

Vitamina E: Apresenta importante ação como anti-oxidante biológico, participando do bloqueio do processo de auto-oxidação das gorduras insaturadas da membrana celular, impedindo reações peroxidativas causadas por radicais livres. Absorção ocorre de 25 a 85% pela ingestão oral, no intestino delgado. É transportada por via linfática e carreada no sangue por lipoproteínas de baixa (LDL), alta (HDL) e muito baixa densidade (VLDL). É armazenada no tecido adiposo, muscular e hepático na forma não esterificada. Sua excreção é pela bile (80%) e urinária como glucorunídeo, produto de sua esterificação.

Vitamina B1 (tiamina): Atua como coenzima em reações enzimáticas nas quais grupos aldeídos são transferidos de um doador para uma molécula receptora. Também envolvida na transmissão de impulsos nervosos. Absorção ocorre no intestino delgado por processo ativo dependente da Na-K-ATPase. Na mucosa intestinal sofre fosforilação, constituindo a forma ativa tiamina pirofosfato (TPP) ou liga-se a proteínas plasmáticas (20 a 30%) para fosforilação hepática. Armazena-se no músculo esquelético (50%), coração, fígado, rins e sistema nervoso. A excreção é urinária.

Vitamina C: Participa da regulação do potencial de óxido-redução intracelular. Essencial à síntese de colágeno, facilitando a hidroxilação enzimática de prolina para hidroxiprolina. Atua sobre a síntese de hormônios adrenais, aminas vasoativas e carnitina. O metabolismo da tirosina interrompe-se na ausência de vitamina C. Aumenta a absorção e utilização de ferro bem como permite a transformação do Fe férrico em Fe ferroso. Absorção ocorre em 80 a 90% na dieta oral, no intestino delgado, por transporte ativo dependente de sódio saturável. Reabsorvida pelos rins em processo ativo saturável. Excretada via urinária como ácido ascórbico ou metabólito (deidroascórbico, 2-3 diceto-1-gulonato, ascorbato 2-sulfato e oxalato).

Magnésio (Mg): Macroelemento, ativador de sistemas enzimáticos que controlam o metabolismo de carboidratos, gorduras, proteínas e eletrólitos. Cofator da fosforilação oxidativa, influencia a integridade e transporte da membrana celular. Media as contrações musculares e transmissões de impulsos nervosos Absorção de Mg ocorre de 30 a 50% na ingestão oral, na porção jejuno-ileal do intestino delgado. O Mg circula ligado à albumina e é armazenado nos ossos (60 a 65%), músculos (27%) e outros tecidos (6 a 8%). É reabsorvido de forma ativa no néfron e passiva no túbulo proximal. Ocorre excreção urinária (1,4 mg/Kg/dia) e fecal (0,5 mg/Kg/dia).

Zinco (Zn): Microelemento ou elemento traço, exerce funções específicas atuando no crescimento e replicação celular, função fagocitária, imunitária celular e humoral, maturação sexual, fertilidade e reprodução. O Zn atua na estabilização de lisossomas nos processos de síntese protéica e de membrana para a circulação de elementos celulares. A absorção de Zn é de 10 a 40% da ingestão oral, no duodeno e jejuno, passiva, formando complexos com ligantes endógenos e exógenos (histidina, ácido cítrico e ácido picolínico). Circula no plasma e sangue ligado à albumina e aminoácidos (55%) e macroglobulinas (40%) não se destinando a uso metabólico. O Zn é armazenado no fígado, ossos, pele e tecido ocular. A excreção de Zn é fecal (10mg/dia) ocorrendo em menores quantidades pela urina, pele, cabelo e sêmen.

Estudos experimentais em que doses de zinco de 600 mg/dia foram administradas após a elaboração de ferida cutânea demonstraram aceleração da cicatrização em relação ao grupo controle. É evidente que esse mineral possui importante impacto no mecanismo de cicatrização, embora no citado estudo a dose seja extremamente elevado, o que dificultaria seu uso clínico. 

Úlcera de pressão:

A úlcera de pressão pode ser definida como modificação degenerativa entre pele e ossos que ocorre em áreas de forças de pressão e fricção local.  Sua prevalência varia de 3,5 a 29% em pacientes internados e pode chegar a 50% dos pacientes em acompanhamento domiciliar (Breslow, 1994). As áreas de ocorrência, seguindo-se a definição apresentada são as regiões de protuberâncias ósseas, como sacro, bacia, joelhos, cotovelos e região occipital. 

O custo da internação hospitalar eleva-se consideravelmente nos pacientes com úlcera de pressão. Interferem de forma mais incisiva o tempo de hospitalização prolongado e o apoio do corpo de enfermagem necessário aos cuidados com o paciente e com a lesão.  A fase de tratamento inicial da úlcera também interfere no custo final da hospitalização (Allman e col, 1999). Quanto mais precoce for a introdução do tratamento, maior a probabilidade de recuperação da lesão em menor tempo.

A classificação da úlcera de pressão é feita em quatro fases:

  1. Eritema –Ocorre eritema local que torna-se esbranquiçado à pressão digital, retornando ao aspecto inicial com o final da pressão local.
  2. Dermatite – Associada ao eritema á dermatite descamativa de áreas centrais à lesão
  3. Erosão – Há presença de úlcera superficial, sem sinais de necrose
  4. Necrose – Está presente a úlcera de decúbito profundo. Pode haver comprometimento de musculatura e exposição óssea, tendinosa e cartilaginosa.

Entre os principais fatores que predispões à úlcera de decúbito estão (Breslow, 1994):

  • Desnutrição (Begsto e Braden, 1991)
  • Imobilidade
  • Incontinência urinária e fecal
  • Hipotensão arterial
  • Temperatura corporal elevada
  • Estado mental

O gasto energético de pacientes portadores de úlcera de pressão está elevado. Quando associado às perdas nutricionais e hídricas, na dependência do tamanho da lesão, a reparação tecidual pode ser prejudicada.

Fatores clínicos associados como. anorexia e depressão, ingestão deficiente e presença de quadro hipermetabólico  dificultam o tratamento e devem ser tratados. Em casos de ingestão oral deficiente a nutrição enteral deve ser considerada.

O tratamento da úlcera de pressão é multiprofissional. As medidas abaixo podem ilustrar a importância de cada profissional na atuação dessa entidade:

  • Melhora do estado nutricional
  • Cuidados locais com a lesão e desbridamento quando necessário
  • Higiene do paciente evitando contaminação da lesão
  • Mobilização do paciente
  • Tratamento da entidade clínica de base

Síndrome de Ehlers-Danlos (EDS)

Essa síndrome e suas variantes consistem num defeito do tecido conjuntivo, mais especificamente no colágeno. Manifesta-se por hiperelasticidade, fragilidade da pele e afrouxamento das articulações. Embora não seja doença com comprometimento nutricional, cabe seu interesse por tratar-se de anomalia ligada ao colágeno.

Hérnia diafragmática, ruptura espontânea do intestino e das artérias com conseqüente aneurisma dissecante de aorta, descolamento de retina e anormalidades cutâneas podem ocorrer na dependência do tipo de EDS manifestada.

As diferentes formas de EDS dependem da alteração enzimática exibida. A inibição da oxidação da lisina impede a formação da ligação cruzada do colágeno o que pode promover modificações na força tênsil do colágeno.

Tipo

Cadeias

Localização

Fibrilas

Derivados

de lisina

Dissulfídicos

Conteúdo de carboidratos

I

(a1I)2 a 2

Pele, ossos, tendões, ligamentos, córnea

Espessas, estriadas

+

_

Baixo

II

(a1II)3

Cartilagens, discos intervertebrais, notocorda

Finas, pobremente estriadas

+

_

Médio

III

(a1III)3

Pele fetal, órgãos internos, aorta, artérias, sinóvia

Estriadas

+

+

Baixo

IV

(a1IV)3

Mmembrana basal, aorta

Não estriadas

+

+

Alto

Quadro 1. Tipos de colágeno, compilado de Robbins SL e Cotran RL – Patologia estrutural e funcional. Ed. Interamericana 1983 pp 215. 1.      Referências

2.      Allman RM, Goode PS, Burst N, Bartolucci AA, Thomas DR – Pressure ulcers, hospial complications, and disease severit: impact on hospital costs and lenght of stay. Adv wound care, 1999;12:22-30.

3.      Barbul A, Lazarou AS, Efron DT, Wasserkrug HL, Efron G – Arginine enhances wound healing and limpocyte immune responses in humans. Surgery 1990; 108:331-7.

4.      Breslow RA, Bergstrom N – Nutritional prediction of pressure ulcers – J Am Diet Association. 1994;94:1301-04.

5.      Kirk SJ, Hurson M, Regan MC, Holt DR, Wasserkrug HL, Barbul A – Arginine stimulates wound healing and immune function in elderly human beings. Surgery 1993;114:155-60.

6.      Rojas AI, Phillips TJ – Patients with chronic leg ulcers show diminished levels of vitamins A and E, carotenes, and zinc. Dermatol Surg 1999;25:601-04.

7.      Whitney JD; Heitkemper MM Modifying perfusion, nutrition, and stress to promote wound healing in patients with acute wounds. Heart Lung, 1999; 28:2, 123-33

IMeN - Instituto de Metabolismo e Nutrição
Rua Abílio Soares, 233 cj 53 • São Paulo • SP • Fone: (11) 3287-1800 • 3253-2966 • administracao@nutricaoclinica.com.br